Um segundo de quedas

Felipe estava decidido a evitar que aquela estranha lágrima atingisse o chão.
Aquela não seria uma tarde fria de fevereiro como as outras. Definitivamente, não. Aquele pingo d'água que em outros meses cairia por motivos banais, tratou de percorrer seu caminho rumo à queda, tendo como rota a bochecha morena do menino e, como alvo inevitável, o solo de seu quintal. Era um destino banal, que se assemelhava ao do próprio menino. Pois, assim como aquele tombar de lágrima, o pobrezinho se imaginou caindo, porém, sem destino, em algum terreno obscuro de sua mente — naqueles lugares em que costumam habitar traumas e decepções. Felipe viu-se caindo irrefreavelmente, como aquela lágrima, pelo peso em sua consciência.
— Pai, o senhor não quer ficar mais com a gente?
A frase foi balbuciada num espaço de tempo maior que a caída daquele triste pingo de sal, mas fora dita em vão. Diferentemente da pergunta — cujo som mal fora percebido pelos seus demais irmãos, maiores, no outro lado da porta — a resposta misteriosamente não recebida ressoaria pela sala, cruzaria cinco camadas atmosféricas e seguiria num reverberar além, ecoando sua dor silente de criança entre galáxias, ultrapassando todas as barreiras físicas já estudadas, ainda que tudo isso acontecesse apenas no universo de sua mente. O que era um mísero ano-luz se comparado à angustiante distância entre aqueles olhos marejados e o chão frio? Algumas coisas simplesmente não podem ser mensuradas.
Quando o pinguinho de lágrima percorreu precisamente um terço de sua queda, surgiu na memória do pequeno um breve registro da mão de seu pai o segurando quando, num descuido, Felipe caiu do galho do jambeiro. Aqueles braços firmes que naquela ocasião lhe salvaram do contato com o chão agora se balançavam feito pêndulo para frente e para trás, no ritmo do caminhar entristecido daquele senhor de meia-idade que deixava a casa. O pai dava passos curtos, porém firmes, e afastava-se cada vez mais. Aquele olho infantil não se assemelhava a uma árvore, tampouco aquela gota a um jambo. E parece que braço algum apararia aquela lágrima.
Não era como a queda da maçã sobre a cabeça do famoso físico inglês, quando lhe aclararam os pensamentos para a formulação de sua lúcida lei da gravitação universal. Desta vez, a descida do pingo tocaria o gramado reagindo a uma causa nunca explicada ao garoto. O silêncio de sua mãe o incomodava e eclipsava seus pensamentos. Num átomo de instante, o garotinho formulou uma hipótese infeliz. E isso era grave. A gravidade é uma lei insensivelmente grave.
— Foi algo que eu fiz, papai?
Seus irmãos ainda comiam do bolo de seu aniversário de oito anos quando o homem de cabelos grisalhos se foi por completo. Aquele cheiro de chocolate deixaria de ser seu favorito? E não apenas isso. Aquele cheiro de grama molhada e aquela brisa de fim de tarde ganhariam novos significados? Tornar-se-iam, vez por outra, em seus dias futuros, naquele sabor amargo presente em seus lábios trêmulos e naquele odor impregnado de queda e perda? Algum bolo voltaria a possuir sabor? Algum aniversário seu voltaria a ter cheiro de festa?
A lágrima que escapuliu do rosto atingiu a metade de seu percurso, mas era como se ela pairasse no ar. Físico inglês algum explicaria tal fenômeno, que mais parecia pertencer ao campo metafísico. Por algum motivo, aquela esferazinha de ínfimos milímetros cúbicos de água salgada que se deslocava verticalmente tornou-se inerte. Talvez aquela situação do pai abandonando a família tenha criado uma efêmera perturbação no tecido do contínuo espaço-tempo, anulando o movimento descendente da lágrima. Não é um consenso entre teóricos da física que, próximo a um buraco negro, a passagem do tempo é percebida de forma diferente? E não é consenso entre poetas que aquele pobre coração de oito anos igualava-se a um desses buracos gigantes?
Ele espantou-se com aquela cena bizarra, fazendo-o esquecer por um instante dos passos de seu pai. Sua lágrima suspensa no ar o distraiu e o aqueceu.
O fato é que Felipe só estudaria esse assunto complicado em algumas décadas, mesmo tendo folheado no dia anterior o livro de astronomia do pai. Por isso, em sua inocência, acreditou tratar-se meramente de uma mão invisível aparando numa palma imperceptível aquela lágrima. Seu pai havia lhe contado certa vez sobre anjos da guarda e sua ação protetora. Talvez nisso, ao menos, ele teria falado a verdade. Mas por que esse trabalho bizarro do querubim de evitar a queda da gota, se o verdadeiro bom serviço seria impedir a saída do pai? Não, não era algo sobrenatural ou sublime ali. Um ser angelical não desobedeceria à ordem divina e interferiria na sequência de acontecimentos da vida por um mero entretenimento e exibicionismo desnecessário de segurar uma lágrima no ar. O pai lhe ofereceu essas duas teorias, uma científica e outra religiosa. Seriam elas outras mentiras?
— O senhor disse que ficaríamos juntos pra sempre!
Aquelas palavras eram inúteis. Ele estava sozinho no quintal. E o frio ali apenas aumentava. Talvez sua raiva tenha interrompido a anomalia gravitacional, visto que a lágrima finalmente venceu a inércia e prosseguiu sua queda, ainda que em baixa velocidade. Se possuísse olhos, a gotícula avistaria o gramado se agigantar cada vez diante de si e o inevitável enfim lhe aconteceria. O chão de certa forma já estava acostumado a receber visitas de gotas como aquela, mas aquela chuva de gota solitária se diferia de todas as outras. O trovão era um pequeno soluço de choro e a nuvem era apenas um menino. Não é da natureza de folhinha alguma receber orvalho humano.
No milésimo de segundo restante antes da gota tocar o chão, ainda coube tempo para o garotinho transformar sua raiva em impulso necessário para evitar aquele baque diminuto. No entanto, percebeu que ele estaria agindo de forma imprudente, como o tal anjo desobediente, e preferiu apenas observar. Talvez houvesse mesmo sabedoria em simplesmente aceitar as coisas inevitáveis.
Pode ser que o distúrbio temporal tenha sido causado por algum outro fenomenozinho — de ordem estritamente natural — ainda não pesquisado por seres terrestres. É possível que fosse apenas a natureza seguindo seu ciclo comum de ações e reações, num dominó bobo de peças que caem empurrando as seguintes. E a peça da vez era a lágrima de Felipe. Talvez por isso ele manteve sua mão parada e não salvou a gota de encontrar o chão. Ao contrário de jambos e do próprio menino, aquele pingo não precisava ser interceptado. Algumas coisas simplesmente não podem ser contidas.
Foi quando a queda finalmente aconteceu. Sem alardes, como imaginado, ainda que reverberasse de alguma forma para algum lugar desconhecido até seu infrassom ser completamente dissipado. E algum dia, igualmente assim, seria esmaecido o mistério da separação de seus pais e o motivo daquela abrupta partida.
Estando o tempo reestabelecido à sua frequência de tique-taques habituais, Felipe deixou cada peça daquele dominó de eventos ir tombando, em seu próprio ritmo cadenciado. O que um menininho sabe sobre a vida? O que sabe sobre a vida de casais? Havia um pai que não mais retornaria, mas havia também uma deliciosa fatia de bolo de chocolate à sua espera, em celebração a mais um ano de rara vida. Seus ouvidos perceberam que seus amigos o chamavam. Ao seu lado, o jambeiro enfeitava o chão com seus inúmeros estames vermelhos-púrpura característicos. O vento empurrava gentilmente, feito carícia, todos os fios de cabelo sobre sua testa. Não seria agora, naquela marcante tarde de fevereiro, que sua mente infantil se envolveria em mais uma de suas bobas imaginações, como essa de uma simples lágrima desprendida suspensa no ar.
O único acontecimento notável ali foi que, ao deixar prosseguir o ciclo, uma estranha sensação de completude e amadurecimento o visitou e não mais se despediu.

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